Como projetos culturais podem fortalecer o ODS nº 5 e ampliar o debate sobre igualdade de gênero e racial.
A discussão sobre igualdade no campo da cultura não se limita ao que está formalmente descrito no ODS nº 5 - alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Há hoje uma militância pela criação de um novo ODS específico para a igualdade racial, que ainda não foi reconhecido pela ONU. Enquanto isso não acontece, trabalhamos na interseção entre o ODS 5 e a igualdade racial, ampliando sua interpretação para abarcar também outras formas de discriminação, como as enfrentadas por populações pretas, indígenas, LGBTQIA+ e pessoas com deficiência. Essa escolha nos permite refletir sobre a igualdade de forma mais abrangente e contextualizada no Sul Global.
A primeira contribuição cultural é o reconhecimento e a valorização desses grupos. A cultura é feita de ideias, e respeitar as ideias significa respeitar as pessoas que as produzem. Dar voz, dar protagonismo e promover artistas, intelectuais e lideranças provenientes de populações minorizadas é uma forma concreta de a gestão cultural contribuir para o ODS 5. Essa promoção não deve ocorrer apenas no palco ou nas exposições, mas também na própria composição das equipes. É necessário refletir: será que há paridade de gênero na minha equipe? Há pessoas com deficiência para debater acessibilidade com propriedade? Há mulheres em número suficiente para discutir assédio e machismo? Há representatividade de pessoas pretas, indígenas e LGBTQIA+ em posições de decisão?
A contratação inclusiva é, portanto, uma ferramenta de igualdade. Mas ela precisa ser acompanhada por uma comunicação e uma programação cultural que sejam acolhedoras. Projetos que, devido ao valor elevado de ingressos, atraem predominantemente públicos brancos e de maior renda, podem buscar compensar essa desigualdade por meio de bolsas, gratuidades ou ingressos sociais para populações pretas, indígenas e periféricas.
Além disso, é fundamental compreender que os problemas enfrentados pelas populações minorizadas têm semelhanças estruturais. Pesquisas recentes demonstram que as mulheres no Brasil ainda recebem, em média, 20,9% a menos que os homens em estabelecimentos de médio e grande porte. No recorte racial, mulheres negras recebem apenas 50,2% da remuneração de homens brancos, e, de forma geral, a renda das pessoas negras equivale a cerca de 58% da renda de pessoas brancas. Além disso, mulheres, pessoas LGBTQIA+, pessoas pretas, indígenas e pessoas com deficiência são frequentemente interrompidas ou têm suas ideias desvalorizadas - fenômeno conhecido como mansplaining - e são muitas vezes excluídas de processos decisórios, ocupando cargos inferiores. Essas desigualdades, ainda que diferentes em expressão, derivam de um mesmo erro histórico e sociológico: a construção de uma cultura que privilegiou o homem branco cisgênero. É justamente nesse enfrentamento que a gestão cultural precisa atuar, desnaturalizando privilégios e promovendo novas formas de equidade.
Outro cuidado essencial é garantir que as políticas de igualdade ampliem e nunca restrinjam. A promoção da diversidade deve agregar, acolher e garantir que todas as pessoas se sintam parte dos processos. A igualdade só se realiza de fato quando todos os públicos podem se sentir pertencentes, iguais e respeitados.
Entretanto, reconhecer a diversidade também significa compreender pautas específicas. Mulheres precisam de espaços para debater saúde reprodutiva e enfrentar a violência de gênero. Homens precisam de processos de reeducação sexual que questionem o machismo. Populações pretas devem acessar a historicidade de sua ancestralidade africana, tantas vezes ocultada. Para os brancos, trata-se de uma conscientização intelectual que contribui para uma retratação social e para a construção da igualdade. Já para os pretos, significa pertencimento, autoestima e o direito de reconhecer-se como parte legítima e valorizada da sociedade. Nesse sentido, políticas culturais inclusivas devem ser plurais e contextualizadas, atendendo às particularidades de cada grupo sem perder o horizonte universal da igualdade.
A cultura, como espaço de memória, de criação e de transformação social, tem a responsabilidade e a potência de liderar essa mudança, colocando a equidade como princípio estruturante de sua prática. O ODS nº 5, quando interpretado em diálogo com outras dimensões da igualdade, nos lembra que a gestão cultural não pode ser apenas estética: ela deve ser também política, ética e social.
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Referências
- AGÊNCIA BRASIL. Renda de pessoas negras equivale a 58% da de brancas, mostra estudo. Brasília: Agência Brasil, 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-03/renda-de-pessoas-negras-equivale-58-da-de-brancas-mostra-estudo. Acesso em: 24 set. 2025.
 - BRASIL. Ministério das Mulheres. 3º Relatório de Transparência Salarial: mulheres recebem 20,9% a menos do que os homens. Brasília: Governo Federal, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mulheres/pt-br/central-de-conteudos/noticias/2025/abril/3o-relatorio-de-transparencia-salarial-mulheres-recebem-20-9-a-menos-do-que-os-homens. Acesso em: 24 set. 2025.
 - IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável - 2024. Brasília: IPEA, 2024.
ONU MULHERES BRASIL. Igualdade de gênero e empoderamento de mulheres e meninas. Brasília: ONU Mulheres, 2023.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: ODS 5 - Igualdade de gênero. ONU Brasil, 2015. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5. Acesso em: 24 set. 2025. - SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. São Paulo: Cultrix, 2017
 - UNESCO. Gender Equality: Heritage and Creativity. Paris: UNESCO, 2014. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000227415. Acesso em: 24 set. 2025.
 
								
															
				
															








