Os impactos da cultura e da arte na saúde ainda carecem de séries históricas robustas e padronização de indicadores. Não por acaso, os marcos internacionais de cultura não costumam listar explicitamente o ODS 3 entre os resultados diretamente atribuíveis às políticas culturais. Ainda assim, o acúmulo de evidências já permite sustentar que participação e fruição cultural, criação artística e ambientes de convivência têm efeitos importantes sobre bem-estar, saúde mental e coesão social — dimensões centrais do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 3 — “Saúde e Bem-Estar: Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades”. Entre suas metas, destacam-se:
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Meta 3.4: “Até 2030, reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças não transmissíveis via prevenção e tratamento, e promover a saúde mental e o bem-estar”;
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Meta 3.5: “Reforçar a prevenção e o tratamento do abuso de substâncias, incluindo o abuso de drogas entorpecentes e uso nocivo do álcool” (ONU Brasil, 2025).
 
Cultura e saúde: um campo ampliado
O Centro Cultural do Ministério da Saúde (CCMS) resume a virada conceitual: “A arte pode ser um empreendimento de saúde”. E amplia: “É fundamental nos abrirmos para outras interpretações, que entenda a relação entre saúde e cultura de forma mais orgânica, admitindo que os dois campos compreendem o mesmo domínio… A arte é um dos campos em que se pode produzir as transformações necessárias para criar novas formas de estar no mundo e para reelaborar a vida com mais qualidade.” (CCMS, 2021).
Esse entendimento se alinha ao ODS 3, especialmente à meta 3.4 (promoção da saúde mental e do bem-estar) e, quando voltado a contextos de vulnerabilidade, à meta 3.5 (prevenção e tratamento do abuso de substâncias).
Evidências: fruição, criação e pertencimento
A literatura em saúde coletiva e artes reforça a tese. “Para curar a subjetividade contemporânea, dopada e em vias de petrificação, seria preciso que receitássemos poesia como se receitam vitaminas.” E, adiante: “A saúde passa a ser relacionada, também, com a possibilidade: de experimentar a criatividade, de participar das trocas sociais, de ter acesso às experiências culturais.” (Lima, E. A. et al., 2015).
Esse entendimento dialoga diretamente com a meta 3.4, pois coloca criatividade, trocas sociais e acesso cultural como fatores protetivos para saúde mental e bem-estar.
Comunidade, mediações e resultados
Os efeitos de projetos artísticos dependem também dos repertórios e trajetórias dos participantes. “As possibilidades de influência de um projeto de educação artística dependem não só do que os programas oferecem, mas, também, fundamentalmente, do que os participantes trazem e são… Estes aspectos… constituem, de alguma forma, um filtro ou peneira através e a partir dos quais as intervenções artísticas podem – ou não – resultar apropriadas.” (Wald, G., 2015).
Esse tipo de mediação ajuda a explicar por que, quando há aderência comunitária, emergem “autovaloração, autoconfiança, autoestima, sensações de desfrute, de bem-estar, de pertencimento…”, os chamados indicadores intermediários de saúde (meta 3.4).
Cultura, arte e prevenção do uso de entorpecentes
A prevenção e o cuidado relacionados a substâncias exigem estratégias que construam laços sociais e alternativas simbólicas. Na perspectiva da Redução de Danos, o estudo etnográfico em São Paulo conclui: “O estudo considerou que as práticas artísticas e culturais podem exercer a função de insumos em RD no que concerne ao estabelecimento de laços sociais.” E caracteriza o “insumo” como “promotor de vínculo entre o toxicômano e quem o oferta, com potencial para deslocar o sujeito da relação solitária estabelecida com a substância na direção dos laços sociais” (Machado, K. da S. et al., 2024).
No plano da prevenção propriamente dita, “Atividades intelectuais podem ser grandes aliadas contra as drogas” (AMPRS, 2023). A combinação dessas abordagens — cidadania cultural, convivência e criação — dialoga diretamente com a meta 3.5 do ODS 3 (reforçar prevenção e tratamento do abuso de substâncias).
Formação, SUS e humanização: cultura como método
Na educação permanente e no SUS, a integração entre ciência, arte e cultura tem sido estruturada de modo explícito. O curso CACS/Fiocruz pauta “Ciência, Arte e Cultura na Saúde (CACS)… com objetivo principal [de] qualificar profissionais… fortalecendo, assim, as políticas de humanização, promoção da saúde e de práticas integrativas e complementares no Sistema Único de Saúde (SUS).” Também destaca: “A junção de Ciência, Arte e Cultura vem crescendo…” e que essas práticas “podem levar os indivíduos a transformarem as suas condições de vida, de trabalho e de saúde.” (Trajano, V. da S. et al., 2018).
Isso conversa com a meta 3.4 (saúde mental e bem-estar) e com a 3.8 (acesso a serviços de qualidade), ampliando o alcance do ODS 3 via práticas culturais nos territórios.
Nise da Silveira e o tratamento pela expressão
A tradição brasileira de atenção psicossocial tem em Nise da Silveira uma referência fundamental. “Opondo-se ao confinamento e às práticas psiquiátricas que considerava agressivas – choques elétricos, lobotomia – propôs novas formas de tratamento. Assim, fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional, cujas atividades deram origem ao Museu de Imagens do Inconsciente, hoje o maior acervo do mundo no gênero.” (Museu de Imagens do Inconsciente, Nise da Silveira, s.d.).
Seu trabalho “antecedeu os movimentos de renovação da psiquiatria na Inglaterra, na Itália e no Brasil” e “seu espírito profundamente humanista exerceu forte influência na cultura brasileira como um todo.” (Museu de Imagens do Inconsciente, Nise da Silveira, s.d.).
O Museu de Imagens do Inconsciente, criado em 1952, consolidou-se como “um importante patrimônio cultural da humanidade, aberto a pesquisadores e ao público em geral”. “Sua característica fundamental é constituir-se como um território de liberdade para a expressão de vivências internas e exaltação da criatividade” e sua reserva técnica “guarda um acervo com mais de 400 mil obras entre telas, papéis, modelagens, textos e poemas.” (Museu de Imagens do Inconsciente, O Museu, s.d.).
O museu é descrito como “um centro vivo de estudo e pesquisa interdisciplinar sobre as imagens criadas pelos frequentadores de seus ateliês terapêuticos. Esses conhecimentos auxiliam na compreensão dos processos psíquicos no intuito de promover o cuidado, a saúde mental e o bem-estar social.” (Museu de Imagens do Inconsciente, O Museu, s.d.).
Diálogo internacional: The Prinzhorn Collection
A experiência brasileira se conecta historicamente a outros espaços dedicados à arte e à saúde mental, como a The Prinzhorn Collection, em Heidelberg, Alemanha. Em tradução livre de seu site oficial: “O Museu Prinzhorn dedica-se à arte criada por pessoas internadas em instituições psiquiátricas, conhecida como arte outsider, revelando como a criatividade pode florescer mesmo sob condições extremas. Sua coleção, iniciada em 1921, é uma das mais importantes do mundo no estudo da relação entre arte e saúde mental.” (The Prinzhorn Collection, tradução livre, 2025).
Esses museus, o de Nise no Brasil e o Prinzhorn na Alemanha, reafirmam a potência da criação artística como prática de saúde, terapia e dignidade — expressão viva da meta 3.4 do ODS 3.
Para quem executa projetos culturais: mensure o que importa
Em projetos culturais — especialmente os de médio e longo prazo — acompanhe benefícios físicos e psicológicos associados à participação:
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Pertencimento e sociabilidade (grupos, redes, convivência);
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Saúde mental e bem-estar (autoestima, autoconfiança, redução de estresse) — meta 3.4;
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Hábitos e riscos (estratégias de cuidado, apoio social; percepção de manejo de tensões sem uso nocivo) — meta 3.5;
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Qualidade de vida (acesso cultural, circulação pela cidade, criatividade).
 
Em síntese, cultura é vetor de saúde: promove vínculos, amplia horizontes, fortalece subjetividades — e ajuda a cumprir o ODS 3.
Bibliografia
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ONU Brasil. Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 3 — Saúde e Bem-Estar. Metas 3.4 e 3.5. Disponível em: brasil.un.org/pt-br/sdgs/3. Acesso em: 20 out. 2025.
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Lima, E. A.; Castro, E. D.; Buelau, R. M.; Valent, I. U.; Inforsato, E. A. Interface arte, saúde e cultura: um campo transversal de saberes e práticas. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, 19(55), 1019–1022, 2015.
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Wald, G. Arte e Saúde: algumas considerações para aprofundar as potencialidades de análise do campo. Interface (Botucatu), 19(55):1051–62, 2015.
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Trajano, V. da S.; Carvalho, A. C. C.; Sawada, A. C. M. B.; Jorge, T. C. de A. Ciência, Arte e Cultura na Saúde. Revista Educação, Artes e Inclusão (UDESC), v. 14, n. 2, p. 134–151, 2018.
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AMPRS – Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Arte e cultura contra as drogas. 21/06/2010 (atualizada em 21/07/2023). Disponível em: amprs.org.br/noticia/arte-e-cultura-contra-as-drogas. Acesso em: 20 out. 2025.
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Machado, K. da S.; Cruz, M. S.; Carvalho, M. C. de A.; Petuco, D. R. da S. Insumos, arte e laço social no contexto das práticas contemporâneas em Redução de Danos no Brasil. Publicação na coleção: 01 jul. 2024.
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Centro Cultural do Ministério da Saúde (CCMS). Cultura e Saúde. 18/01/2021.
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Museu de Imagens do Inconsciente. Nise da Silveira. Disponível em: https://museuimagensdoinconsciente.org.br/nise-da-silveira/. Acesso em: 20 out. 2025.
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Museu de Imagens do Inconsciente. O Museu. Disponível em: https://museuimagensdoinconsciente.org.br/o-museu/. Acesso em: 20 out. 2025.
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The Prinzhorn Collection. Outsider Art. Tradução livre. Disponível em: https://www.sammlung-prinzhorn.de/en/museum/outsider-art. Acesso em: 20 out. 2025.
 
								
															
				
															







