Quando falamos do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 1 — erradicação da pobreza em todas as suas formas — evocamos a realidade mais dura da humanidade: a fome, a miséria, a ausência de teto, de vestimenta e de cuidados básicos de saúde e educação. Essas privações não existem de forma isolada. A falta de alimento desencadeia uma cadeia de carências que atinge o desenvolvimento fisiológico, psicológico, educacional e, sobretudo, o sentimento de pertencimento social. Pensar no ODS 1 é, portanto, refletir sobre a vida das pessoas mais frágeis de nossa população, que convivem diariamente com necessidades cruéis e urgentes.
Se nós, gestores e gestoras culturais, desejamos contribuir de maneira real com esse objetivo, precisamos partir de três perguntas fundamentais. Primeiro: “isso me dói?” — e para a maioria de nós, sim, essa dor é coletiva e nos move. Segundo: “eu conheço esse público?” — pois sem contato direto com comunidades em situação de vulnerabilidade, dificilmente entenderemos suas reais necessidades. Nesse caso, apoiar coletivos e projetos já enraizados nesses territórios pode ser mais eficaz. E, por fim: “eu tenho capacidade técnica e metodológica para que meu projeto cultural contribua contra a miséria?” — apenas com essa consciência crítica poderemos alinhar propostas culturais a ações de impacto social concreto.
As formas de contribuição da cultura para o ODS 1 são diversas. A primeira, e talvez a mais abrangente, é a conscientização. Por meio da arte, das linguagens simbólicas e da criatividade, a cultura pode sensibilizar a sociedade sobre a existência de milhões de pessoas em situação de fome e pobreza, despertando solidariedade e mobilizando apoios. Exposições, espetáculos, festivais e campanhas culturais têm a potência de tocar corações e abrir mentes para o compromisso com a erradicação da pobreza.
Outra contribuição direta é o atendimento emergencial. Projetos culturais, especialmente de grande porte, podem funcionar como catalisadores de arrecadação de alimentos, roupas e recursos a serem redistribuídos. No entanto, é necessário frisar um ponto essencial: a fome é diária. Não basta uma ação pontual. Para que haja impacto real, é preciso pensar em continuidade. Projetos que mantêm a regularidade no atendimento — por exemplo, doações de alimentos em bases semanais ou mensais — permitem que famílias possam liberar energia vital para outras dimensões da vida, como estudo, lazer e desenvolvimento comunitário.
A cultura também contribui através da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial ligado à alimentação e à subsistência. Isso inclui os modos de fazer alimentos, os saberes tradicionais de cultivo e preparo, as técnicas de reaproveitamento e sustentabilidade criadas por comunidades em vulnerabilidade. Trata-se de um patrimônio vivo que, além de nutrir, ensina caminhos para enfrentar a escassez com criatividade. Reconhecer, valorizar e salvaguardar essas práticas significa fortalecer a resiliência cultural e alimentar das populações mais carentes, transformando conhecimento em ferramenta contra a fome.
Iniciativas como o turismo de base comunitária em territórios periféricos e tradicionais, projetos de gastronomia social, hortas comunitárias e experiências educativas têm demonstrado como a cultura pode ser aliada direta do ODS 1. Ao conjugar conscientização, atendimento direto e valorização de saberes locais, a gestão cultural se coloca como protagonista de um futuro mais justo. A erradicação da pobreza não é apenas uma meta estatística — é um compromisso ético e civilizatório que passa também pelo campo simbólico, criativo e comunitário da cultura.
Referências
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: ODS 1 – Erradicação da pobreza. ONU Brasil, 2015. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/1. Acesso em: 24 set. 2025.
UNESCO. Culture|2030 Indicators. Paris: UNESCO, 2019. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000371562. Acesso em: 24 set. 2025.
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável – 2024. Brasília: IPEA, 2024.
SENAC São Paulo. Gastronomia Social e Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Senac, 2023.