Patrimônio Cultural Imaterial: a força invisível que molda identidades

Há algo que nos conecta como sociedade que vai além de monumentos, praças e edifícios históricos. São sons, gestos, sabores e celebrações que não se guardam em vitrines de museus, mas que vivem em cada corpo que dança, em cada voz que canta, em cada mão que molda saberes ancestrais. Esse é o patrimônio cultural imaterial – invisível aos olhos, mas essencial para que possamos nos reconhecer como seres humanos e como comunidade.

Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, 2014), o patrimônio imaterial se manifesta em quatro dimensões principais:

  • Celebrações, como o Círio de Nazaré (PA), o Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão e a Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis (GO);
  • Formas de expressão, como a Literatura de Cordel, o Frevo, a Roda de Capoeira e o Jongo do Sudeste;
  • Lugares, como a Feira de Caruaru (PE) ou a Cachoeira do Iauaretê, considerada sagrada por povos indígenas;
  • Saberes, como o ofício das baianas de acarajé, a produção de cajuína no Piauí ou o modo artesanal de fazer queijo em Minas Gerais.

Cada prática é um elo de continuidade entre gerações, um fio de memória que nos lembra que cultura é vida em movimento.

Com a Convenção da UNESCO para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003), ficou claro que preservar esses bens não é apenas “guardar o passado”, mas criar condições para que tradições sigam sendo reinventadas no presente. Afinal, o patrimônio imaterial só existe porque é praticado, vivido, sentido (CUNHA FILHO; SCOVAZZI, 2012).

No Brasil, um passo decisivo foi dado com o Decreto nº 3.551/2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. Esse marco legal abriu espaço para que expressões antes vistas como “folclore” fossem reconhecidas como parte essencial da identidade nacional. Vale a pena pesquisar esse decreto: é nele que está a base para tantas políticas culturais que hoje valorizam mestres, comunidades e tradições.

A obra Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial – uma análise comparativa entre Brasil e Itália, compara o reconhecimento de tais bens no Brasil, usando o Ceará como exemplo, e a Itália, considerando a região da Lombardia. Lá, podemos mencionar como Patrimônios Imaterias reconhecidos a dieta mediterrânea, reconhecida por ser uma das mais saudáveis e longevas do mundo, a falcoaria (arte de criar, treinar e cuidar de falcões e outras aves de rapina), o canto de tenores da Sardenha, entre outros. O livro resultou da participação do professor Humberto Cunha Filho, grande referência de direitos culturais no Brasil, no programa de Visiting Fellow na Universidade de Milão, sob supervisão do professor Tullio Scovazzi.

 

A parte brasileira comparada na obra vem do Ceará, com a política dos Tesouros Vivos da Cultura (termo inspirado na Convenção da UNESCO), sustentada pela Lei Estadual nº 13.427/2003 (Lei do Registro) e depois pela Lei nº 13.842/2006 (Lei dos Tesouros Vivos). Desde 2004, já foram reconhecidos 94 mestres, sete grupos e uma coletividade, o que mostra a efetividade da política pública em transformar detentores de saberes tradicionais em protagonistas da salvaguarda cultural (IBDCult, 2021). Como lembra Chiara Bortolotto (2008), o programa de Tesouros Humanos Vivos segue sendo uma das práticas mais eficazes da Convenção da UNESCO.

Mais do que preservar festas, danças ou ofícios, salvaguardar o imaterial é um ato de resistência e pertencimento. É dizer, em tempos de globalização acelerada, que a diversidade não é obstáculo, mas riqueza. É reafirmar que a cultura não é passado morto, mas presente fértil, capaz de nos projetar para o futuro sem perder nossas raízes.

E você, que práticas culturais da sua região ajudaria a preservar? Pesquise sobre o Decreto nº 3.551/2000, conheça os Tesouros Vivos da Cultura e reflita: quais tradições da sua comunidade poderiam ser reconhecidas como patrimônio imaterial? Qual q melhor forma de preservar esse patrimônio? Auxílio financeiro a mestre e mestras? Registro e salvaguarda de linguagens e manifestações? Divulgação e promoção a nível nacional e internacional? Seja qual for o caminho, a preservação começa no olhar atento e na valorização de quem mantém viva a chama da cultura.

Referências

  • BORTOLOTTO, Chiara. La sauvegarde du patrimoine culturel immatériel: enjeux d’une nouvelle catégorie. Paris: Éditions de la Maison des sciences de l’homme, 2008.
  • BRASIL. Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2000.
  • CUNHA FILHO, F. Humberto; SCOVAZZI, Tullio (orgs.). Salvaguarda do patrimônio cultural imaterial: uma análise comparativa entre Brasil e Itália. Fortaleza: Edições UFC, 2012.
  • INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (IPHAN). Patrimônio Imaterial. Brasília, 2014.
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DA CULTURA (IBDCult). Tesouros Vivos: política cultural de proteção da vida. 2021. Disponível em: https://www.ibdcult.org/post/tesouros-vivos-pol%C3%ADtica-cultural-de-prote%C3%A7%C3%A3o-da-vida. Acesso em: 16 set. 2025.
  • UNESCO. Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Paris: UNESCO, 2003.

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